domingo, 9 de novembro de 2014

Como (des)construir uma mulher feia


 impressões sobre o filme Violette

Simone de Beauvoir se refere à Violette Leduc, nas cartas que escreve a Nelson Algren, como “a mulher feia”. Foi com alguma chateação que li e reli essas palavras e as reclamações de Beauvoir sobre as vezes em que jantava com Leduc. Aguentar a mulher feia parecia um fardo. Daí eu me lembrava de algumas parentes e vizinhas, que infelizmente estiveram muito presentes na minha formação – e que ainda insistem em invadir o meu espaço e da minha família –, que se dedicam a uma vida de aparências, que caluniam os outros, que criam intrigas nas vidas alheias enquanto se escondem atrás de sorrisos, cumprimentos cordiais e discursos em nome do amor. O fato de Beauvoir ter amizade com Leduc e rotulá-la como “a mulher feia” me remetia mais a esse tipo de pessoa – as parentes e as vizinhas – do que à mulher que desmantelou o Eterno feminino, tão nocivo às mulheres, e que chamava a atenção das mulheres para que elas se unissem. Mas nessas cartas já era também uma surpresa o encanto no qual ela se enredava em sua paixão por Algren.
Nunca fui atrás de outros escritos sobre Violette Leduc, nem dos escritos dela; em um livro sobre Beauvoir encontrei uma foto dela e não pude deixar de pensar em sua aparência, achei a mulher... feia; mas feia para mim, não universalmente feia. Mas eis que surge um filme sobre Violette Leduc: Violette (Violette, direção: Martin Provost, França, 2013), em que a saga de Leduc para tornar-se escritora e a amizade com Beauvoir são narradas com a importância que Leduc merece, com ênfase em sua escrita poética e com uma imagem forte e essencial da presença de Beauvoir na vida da escritora.
O filme mostra Violette já adulta, desde quando ela começa a arriscar as suas primeiras palavras pensando em escrever um livro - na época em que ela ainda roubava comida e negociava no mercado clandestino para sobreviver aos estragos da guerra – até o reconhecimento de sua obra que a permite caminhar com as suas próprias pernas e ter a própria vida em suas mãos de escritora.
Não poderia confrontar o que assisti com a vida de Leduc, já que esse filme é minha única referência a respeito dela. Nele, o que vi foi uma Violette Leduc inteligente, que mesmo sem ter estudado ou trabalhado, escrevia muito bem, mas que era ávida por algo que preenchesse ora o seu coração, ora o seu corpo. Ela buscava uma mulher, um homem, outra mulher, outro homem, alguém que a desejasse carnalmente mas se sentia, na maior parte do tempo, uma mulher feia que ninguém desejava. Ao mesmo tempo, ela queria atenção, talvez a atenção que não tivera da mãe, a quem ela acusa de nunca ter segurado a sua mão, mas somente a manga da sua blusa, para atravessar a rua quando criança. Leduc lamenta e se revolta o tempo todo pelo tempo que as coisas levam para acontecer para ela, ou por tudo o que deu errado em sua vida, e ela tem a si mesma como causa de todos esses estragos; quando ela se irrita com a mãe e esta lhe pergunta o que fizera a ela, Leduc responde: “Você me fez!”
Leduc parece buscar alguém mas desconfia de todos ao seu redor, outras vezes se apaixona e logo se decepciona por não ser correspondida da forma que espera. Ela chora em desespero como se todos fossem culpados pelos seus atos, e ela, culpada pelo que é, pelo que se tornou. Mas é nas relações intersubjetivas, mesmo que essas sejam tão espinhosas, que Leduc consegue alcançar alguma paz e satisfação em sua vida. Em Paris, na casa de um amigo do amigo que a magoara, ela encontra jogado o livro A Convidada de Simone de Beauvoir, ela leva o livro para casa, lê e decide entregar os seus escritos à Beauvoir, que os aceita, lê e passa a ajudar Leduc a publicá-los e a escrever mais. Mas Leduc se apaixona por Beauvoir, a cerca, cobra atenção, coleciona as suas fotos e a tem como objeto de desejo; atentando à essa situação, ficou bem mais fácil entender que Beauvoir carregava um fardo, já que Leduc não a deixava em paz e era um tanto insistente. Contudo, Beauvoir não a agrada, não a incentiva ao choro desenfreado, não a tem como coitada, não passa a mão em sua cabeça, mas sempre a impulsiona a escrever mais, e lhe mostra a importância desse trabalho. Beauvoir não deixa a amiga desistir, assinala a importância da busca por autonomia, e também a importância de contar sobre o aborto que fizera, sobre a sua sexualidade e sobre as suas experiências homoeróticas para ajudar outras mulheres. Beauvoir envia a Leduc, se passando pela Editora Gallimard, um pagamento mensal para que ela se sustente; além disso, Beauvoir também a acompanha no seu processo de recuperação em uma clínica quando ela adoece, levando as cartas e o reconhecimento da crítica nos jornais, que finalmente começam a surgir para o trabalho de Leduc. Assim, compreendo o quanto Beauvoir fez por Leduc, e se ela a chamava “a mulher feia” quando falava dela aos outros, ela de alguma forma preservava a sua identidade; para Beauvoir Violette Leduc era uma escritora, a tornar-se conhecida, com um trabalho importante por fazer pelas mulheres, e “a mulher feia” era a sua amiga carente que a idolatrava e cobrava demasiada atenção, que fugia desse trabalho e que se escondia em um ser-mulher-feia.
É preciso o reconhecimento de seus projetos, que lhe trazem sustento e a aprovação pelo olhar do outro, e quando ela se debruça sobre o trabalho e recebe esse reconhecimento, vemos uma mulher cuja aparência lhe pesa menos, que respeita a liberdade de Beauvoir na relação que elas mantém, que abre espaço para que as pessoas se aproximem dela e até mesmo a desejem, e que não dá tanta importância quando alguém a abandona.
Leduc encontra um lugar no campo para viver, e é nesse lugar que ela está apaziguada, sem asfixia, sem ser a filha bastarda, sem estragos (Asfixia, A filha bastarda e Estragos são títulos de seus livros), escrevendo no final do filme, enquanto Beauvoir está na televisão falando do percurso de Leduc e da contribuição que ela fez às mulheres que, naquela altura (década de '60), já tinham a permissão para abrir conta em banco, sem o marido (exemplo mostrado no filme).
Vejo no final do filme uma lente feminista, que exalta toda e qualquer emancipação da mulher, por meio do trabalho, do coletivo, da amizade entre duas mulheres, da literatura a partir de confissões íntimas que falam com e por muitas outras mulheres. Sozinha, Leduc existia enquanto mulher feia e assim insistia em mostrar-se ao mundo. Beauvoir a força a deixar de lado a má-fé da feiúra e a assumir a própria existência para além do seu corpo, a fazer de si o que não seja “a mulher feia”. A feiúra de Leduc não está em absoluto no seu rosto, mas está nos maus tratos às mulheres solteiras que recusam o casamento, às mulheres lésbicas, às mulheres que abortam; a feiúra de Leduc é construída pela sociedade que a convence a assumi-la, e é escutando Beauvoir que ela vira a mesa e desconstrói a sua feiúra ao expor a sua singularidade: a sua sexualidade, e a sua vontade de não casar e de não ser mãe, como escolhas de qualquer mulher, de muitas mulheres, que se tornam feias aos olhos da moral dominante. É nesse momento que o penteado, as roupas e a maquiagem de Leduc mudam; ao meu ver, ficam mais harmoniosos e mais bonitos, mas longe de tentar impor à mulher um modelo de aparência para que ela fique bonita, prefiro entender que ver uma Leduc bonita na tela corresponde a um tornar-se bonita – independente de como se dá esse tornar-se – que representa um tornar-se o que quiser, deixando assim de existir enquanto mulher feia. 

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