sábado, 8 de março de 2014

Siri Hustvedt, eu e as nossas "falhas de caráter"

"[...] havia uma coisa chamada sinestesia reflexiva, quando alguém sente o toque ou mesmo a dor alheia só de olhar para a outra pessoa. De todo modo, essa forma de sinestesia só foi descrita e definida em 2005. Quando eu era criança, minha mãe costumava me dizer que eu era 'sensível demais para este mundo'. Ela não falava por mal, mas por muitos anos considerei minha hipersensibilidade uma falha de caráter. Desde que me lembro, sinto os toques, batidas e choques bem como o estado de espírito de outras pessoas, quase como se acontecessem comigo. Consigo distinguir entre um toque real e o que sinto quando vejo alguém ser tocado, no entanto a sensação existe, mesmo assim. Sinto como se fosse a minha a dor de alguém que torce o tornozelo. Observar a mãe que acaricia a filha me dá o prazer físico que eu sentiria ao fazer o mesmo gesto. Se alguém se machuca num filme, fecho os olhos ou saio da sala. Quando menina, passei metade de um episódio de Lassie no banheiro. Filmes violentos ou de terror são intoleráveis, pois sinto a tortura das vítimas. Olhar, ou só pensar num cubo de gelo me dá arrepios. Minha empatia é extrema e, para ser franca, por vezes sinto com exagero e preciso me proteger da superexposição a estímulos que me tornariam um pilar de carne dolorida. Tudo isso, ao que se sabe, caracteriza quem sofre de sinestesia reflexiva. 
Também reajo com intensidade a cores e luzes. Por exemplo, durante uma viagem à Islândia eu viajava num ônibus, olhando pela janela a paisagem desprovida de árvores, quando passamos por um lago de cor inusitada. Sua água era azul-esverdeada, clara, glacial. A cor me agitou como se fosse um choque. Percorreu meu corpo inteiro, e me vi resistindo a ela, fechando os olhos, agitando as mãos num esforço para expelir aquele matiz insuportável do corpo. [...] Diversos tipos de luz geram emoções distintas em mim: o sol fraco da tarde entrando através da janela, o brilho irritante das luzes da rua, a crueldade das lâmpadas fluorescentes. [...]" (Siri Hustvedt, A mulher trêmula ou Uma história dos meus nervos, p.112-113)

Foi por causa do trecho acima, passagem do livro de Siri Hustvedt em que ela nos conta sobre a sua busca pela compreensão e pela causa de seus tremores ao falar em público a partir de um determinado momento da sua vida, que eu decidi escrever sobre a minha sensibilidade. Assim como a mãe de Hustvedt, a minha mãe também me considerava sensível demais para este mundo quando eu era criança, ela dizia algo quase com as mesmas palavras usadas pela mãe da autora, e assim como Hustvedt, também sempre considerei o meu excesso de sensibilidade uma falha de caráter; aliás, quando li o trecho que cito acima, "falha de caráter" soou como uma expressão mágica para mim e traduziu o que eu sempre senti, antes sem saber nomear, em relação à minha postura no mundo e em relação às pessoas exageradamente determinada por uma gritaria de sentimentos quase inexplicáveis. Contudo sempre pensei que por ser filha única e ter tido alguns problemas de saúde na infância e ter tido mãe e pai superprotetores, esses sentimentos poderiam ser resultados da situação na qual se deu a minha formação, o que definem por aí como "frescuras". Nunca pensei em fazer uma lista do que sinto em exagero, mas sinto cada vez mais vontade de cruzar as minhas sensações com as de Hustvedt num texto toda vez que releio o trecho acima. Não sei por onde começar, nem como classificar os itens dessa lista, então posso começar dizendo que quando exposta a determinadas situações sinto náuseas terríveis intercaladas de falta de ar, o que considero sintoma de uma ansiedade absurda. Talvez eu seja apenas uma pessoa ansiosa e insegura que acumula muitas coisas e faz algum drama, drama queen, "fresca"... Mas há outras coisas: Choro em quase todos, TODOS os episódios de Grey's anatomy, todos os pelos dos meus braços arrepiam em shows de bandas cujas letras dão voz ao que eu tenho entalado no peito, houve uma época em que eu sentia dores de cabeça com frequência no final da tarde, passar por uma loja de lustres à noite é uma agressão, a luz baixa de bar me deixa um pouco impaciente. Só de olhar para uma placa de isopor ou unhas grandes perto de uma lousa tenho vontade de me contorcer, aliás unhas grandes me desesperam, e se são as minhas unhas que estão grandes, sinto os dedos sujos e pesados o tempo todo. Ver duas pessoas se beijando às vezes me traz o toque dos lábios de alguns beijos que experienciei e que às vezes me dão saudade. Quando levo uma pancada leve, como quando a catraca do ônibus ou do metrô bate no quadril, a dor parece durar muito mais do que o segundo da batida. Tomar soro, especialmente com remédios para o estômago, me dá a sensação de que tudo dentro do meu corpo vai estourar e a vontade que sinto é de sair correndo. Tem dias em que a buzina do moço que vende pão na bicicleta ou o encontro brusco de um garfo e um copo, ou de um prato e uma pia, ultrapassam os meus ouvidos e causam dores na minha cabeça, ou basta que eu tome um susto para a dor começar. Conversar com alguém segurando uma faca, ou qualquer objeto pontiagudo, na minha direção me dá a impressão de que a faca ou o objeto irão de encontro aos meus olhos. Os fogos do Ano Novo me causavam desespero quando eu era criança, hoje só me angustiam, assim como os relâmpagos. Fico meio zonza e sinto como se eu não estivesse prestando atenção em mais nada em uma conversa com mais de três pessoas. Ficar acordada de madrugada me dá enjoo, um dos motivos para evitar baladas, onde eu adorava ir para dançar; nos últimos anos me sinto triste dançando e cheguei a chorar e sentir falta de ar em uma pista de dança. Outro dia um moço estava passando mal no metrô e eu não sabia como oferecer a minha garrafa de água para ele porque parecia que eu começava a assimilar o mal estar dele, o que fez eu me lembrar de quando uma amiga da faculdade chegou na sala de aula devastada e com o comportamento bastante alterado e eu me sentia não só preocupada, mas desesperada com a situação. Naquela noite não consegui dormir. A falta de ação pode ser consequência de eu não ter sido criada para agir e ajudar, mas só para ser protegida. Os enjoos, como eu apontei, devem ser sintomas de ansiedade. As dores de cabeça e a sensibilidade nos ouvidos podem estar relacionados à minha disfunção da articulação temporomandibular, problema que eu gostaria de investigar com o afinco que Hustvedt pesquisou a sua doença, mas não consigo tempo para me debruçar em tantos livros de diversas áreas e por enquanto não penso que sou tão inteligente quanto ela para elaborar um trabalho de tanto fôlego para entender a própria doença. Talvez eu não tenha sintomas de sinestesia reflexiva, talvez só tenha sido um encanto e um sentimento intenso de conforto e acolhimento ao me encontrar nas páginas 112 e 113 do livro de Hustvedt.     

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