sábado, 26 de julho de 2014

quando a neve começa a derreter

Laura ouvia Portishead quando foi humilhada em sua própria casa. Era um dia frio em que a neve forrava os telhados de um aparente clarão sólido e fofo que logo depois derreteria e faria todos escorregarem até tocarem não só com os pés, mas com o corpo todo o chão da realidade, ela continuava a ouvir Portishead e tentava se concentrar em mais um artigo de botânica de uma futura colega que iria trabalhar com ela em sua próxima pesquisa enquanto sua cabeça chacoalhava por dentro e corava de um tom semelhante ao do vinho o seu rosto ornado por redondas lentes sustentadas por um acrílico vermelho sangue, ela lembrava da humilhação. Fora humilhada em sua própria casa, obrigada a entregar a sua presença e o seu sorriso para alguém que por acaso era da mesma família que ela, isso aos olhos da sociedade, porque para ela... o que era família? Família nada mais era do que as pessoas que a aceitavam e que viviam e construíam coisas significativas com ela, quase isso. Ela se sentia um galho de uma árvore que estava por um fio para se separar de todos os outros galhos que o apertavam e das folhas que balançavam sobre e sob ele. Laura não compreendia como a forçavam a simplesmente descer as escadas, entregar o seu sorriso, um mecânico "tudo bem e você?" e deixar-se tocar por alguém que a difamara, para a sanguessuga da árvore de sangue, para alguém que manipulava e colocava cupins na árvore inteira. Laura não sabia onde cairia se o galho quebrasse, nem sabia se compraria um serrote para se livrar de tudo isso. A cena durava menos de um minuto, mas a humilhação permanecia por horas, isso quando ela não tinha que engolir presentes junto com tudo que ela apertava entre os dentes e se recusava a engolir, mas era impedida de falar, impedida por uma ameaça de um coração explodir ou impedida pelo seu próprio cansaço em saber que a sanguessuga, a difamadora, a manipuladora, a senhora dos cupins, iria torcer todos os galhos, chacoalhar a árvore e fazer de Laura a vilã. Era mais um dia com um gosto cinza de formigas no estômago em que a neve começava a derreter com a esperança de Laura ser quem ela queria, mais um dia em que Laura queria sumir e não falar mais com toda árvore. Mas ainda não, só quando ela terminasse de cortar as suas próprias lascas para construir o seu próprio abrigo.

2 comentários:

  1. Sabe que Portishead me traz lembranças extravagantes? Lembro de quando me afetei pela primeira vez por esse som e também era época de estar alheio às ideias de família e amizade - encontrei junto com esse som amizade duradoura. Sempre evitei deixar formigas agirem soltas em meu estômago, mas só música e conversas-entre-silêncios me salvaram dos insetos temerosos!

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  2. Me afetei pela primeira vez pelo som do Portishead em uma promo da Mtv, mas eu não fazia ideia do que era aquele som... tempos em que levava um tempo para se descobrir as coisas, até que veio o "Fica Comigo", que eu fiz questão de assistir, torcer, comemorar, espontaneamente. É importante ressaltar que eu não fazia ideia que o feminismo existia naquela época e acho que não conhecia ninguém da minha idade que não fosse homofóbicx... época em que a Mtv me educava bem. Enfim... e no "Fica Comigo" o rapaz Conrado pediu como trilha sonora do beijo a música "Glory box" do Portishead, daí tocou e eu descobri! O nome ficou anotado por muito tempo num papelzinho até que um dia a internet veio e eu tive acesso ao som e às palavras da Beth Gibbons, "I'm so tired of playing, playing with this bow and arrow. Gonna give my heart away. Leave it to the other girls to play..."! Portishead é uma das bandas que ainda espero ver! Quem sabe um dia... E das boas surpresas de hoje, nunca imaginei que você conhecesse Portishead! Quem foi a amizade duradoura que te apresentou?
    Ah sim. A música também me salva, mas de repente, quando olho, as formigas estão fazendo piquenique no meu estômago.

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