sábado, 6 de fevereiro de 2016

Hoje não é dois mil e seis (esboço 2 - 05.02.2016 - poema escrito para o 2° Foto sarau - 28.02.2016*)

para G.

Dois dias a cada dez anos,
ou são dois dias, dez anos?
Nossas bocas trincando.
Eu aos vinte, tu aos trinta.
Eu aos trinta, tu aos quarenta.
Os mesmos ou sombras
Daqueles dois de dois mil e seis.
Quando seus dentes, meus lábios, no inverno, pela primeira vez.
Vestígios frios e etéreos
Teu silêncio quase eterno me visita.
Te enterrei. Me enterrei.
Hoje não é dois mil e seis.
Dois mil e dezesseis
Acaso pensado, encontro marcado.
Olhos devoram, abraços deslocam, dois segundos.
Descascam o tempo útil os dentes.
De repente, uma década ausente.
Não era dois mil e seis nem dois mil e dezesseis.
Verão, tua volta e a minha melhor versão.
Tu? Vestido, quero não.
Nas pontas dos teus dedos, meus fantasmas.
Teus dentes desenham no meio seio
A delícia e a dor do desapego,
Que não aprenderei desta vez.
A durar, meu mundo sob teu olhar
E teu corpo a me nortear.
Nem o tempo matemático nem meus versos desnorteados podem contar.
Tu, despido aos meus trinta, ou enquanto eu viva, outra vez, não sei.
Tu, desaparecido pela segunda vez.
Sedenta e tensa de saudade, sinto, sento e não espero.
Te desejo, no meu corpo prego desespero.
Na sombra do teu silêncio,
Não sei se te escrevo ou se me penteio,
Se esmurro o teu tempo ou o meu espelho.
Se esvaece no meu seio a duração do nosso desejo.
Hoje é só dois mil e dezesseis a se desenrolar no tempo.


*Postarei a versão final após o dia 28.02.

Hoje não é dois mil e seis - para G. (esboço 1 - 04.02.2016 - poema escrito para o 2° Foto sarau - 28.02.2016*)

Dois dias a cada dez anos
Nossas bocas trincando.
Quatro vezes em cada dez anos.
Nós, em uma década:
Eu, aos vinte, aos trinta
Tu, aos trinta, aos quarenta.
Não somos outros senão sombras
Daqueles dois de dois mil e seis.
Seus dentes, meus lábios, pela primeira vez.
Vestígios frios e etéreos
No teu silêncio quase eterno.
Te enterrei. Me enterrei.
Dois mil e dezesseis
O tempo útil dito década descascado pelos dentes.
Acaso pensado, encontro marcado.
Olhar, abraço, dois segundos e 
De novo as mordidas.
Dois dias, outra vez.
O verão, tu e a minha melhor versão.
Meus fantasmas nas pontas dos teus dedos.
Dentes que desenham no meio seio a delícia e a dor do desapego,
Que não aprenderei desta vez.
Vestido, não quero te ver.
Nem teu olhar para o meu mundo
Nem o meu mundo em teu corpo
Meus precários versos sabem descrever.
Tu, vestido ou entregue
Aos meus trinta outra vez, não sei.
Pela segunda vez, senhor do sumiço e do sabor intenso.
Tensa de saudade, sinto, sento e não espero.
Prego desespero no meu corpo e no meu desejo
Na sombra do teu silêncio.
Não sei se te escrevo ou se me penteio
Se grito entre os seus cachos grisalhos cortados,
Se esmurro o teu tempo ou o meu espelho.


*Postarei a versão final após o dia 28.02.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Encontro aberto #0 do Cortázar Clube

Leitura do "Manual de Instruções" do livro Histórias de Cronópios e de famas de Julio Cortázar.

O Cortázar Clube é o encontro de quatro pessoas (Alfajor, Diego, Julie e Marcos) - às vezes três, às vezes duas - para ler algo de Cortázar e conversar.
Convidamos todas, todos e todxs para um encontro aberto no qual faremos uma roda de leitura seguida de um bate-papo livre sobre o texto.
A leitura prévia do texto escolhido não é obrigatória mas pode contribuir na sua participação. 

Encontro aberto #0 do Cortázar Clube na Casa Elefante  Rua Cesário Mota Junior, 277 - próximo à estação Santa Cecília do metrô (saída para o Largo da Santa Cecília, Rua Dona Veridiana, à esquerda na Rua Jaguaribe até a Cesário Mota Junior) - sábado, dia 13 de fevereiro de 2016, das 15h às 18h.

http://cortazarclube.blogspot.com/2016/01/encontro-aberto-0.html
http://www.facebook.com/events/201578503527410/

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

let go [poderia ser uma das phrasal verbs que ilustram a vida]

let go
to stop holding something
Hold on tight and don't let go!
Let go of my hand, you're hurting me! 


Mas let go não é phrasal verb.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Das possibilidades de fuga

Bela, esbelta, esguia,
Sentada espera pela estrela guia.
Estoura o tempo.
Dizem dela, histeria.
Calcula os passos,
Pés pequenos sem espaço no tecido imenso,
Imersa no que dizem seu sexo, seu gênero.
Ditam, drogam, determinam o seu desejo
E a distância entre a árvore e os seus dedos.
Doida, deseja mesmo
Vendaval e vida,
Ver a árvore dançar, dobrar-se aos seus pés,
Poder pular galho e cerca,
Ver no espelho a árvore
Destruída

Poema escrito para a foto #2 do sarau do 38° Fotroca.

Memórias salgadas

Lembra de quando
pegou na minha mão, puxou a minha orelha
e me levou até o fim
da linha da sua mentira?
Sussurrou-me peixes
até que as minhas lentes eram redes.
E eu, arrebentei
cada pedra de sal do seu olhar.
Afundei,
com as pedras nos bolsos, como Woolf.
Retornei,
como Lady Lazarus de Plath.
Livrei-me da rede, das pedras, dos peixes.
Mas não do peso, do alto preço,
das suas mãos empedradas
de fantasias e mentiras
que eu insisto em
apertar.
"Perdoa-me"
é a pedra
que você deveria atirar aqui
no mar.

Poema escrito para a foto #1 do sarau do 38° Fotroca.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

"you show up and the world is wild!"

Rainer Maria, a banda, foi a inspiração para nomear este blog, não só o nome dele, mas também o endereço, fazem referência à banda. "A better version of me" é o nome de um álbum e "The awful truth of loving" o nome de uma música da banda. Há dez anos, escutando os álbuns A better version of me e Long knives drown, lendo O amor nos tempos do cólera de Gabriel García Márquez, eu encontrava pistas do que eu sentia. Se mantenho as referências até hoje é porque algo daquele tempo ainda está comigo - e é disso que falo quase o tempo todo neste blog - mesmo que não exatamente da mesma forma... ao longo dos anos, mais bonito, mais triste, mais complicado, mais pesado, mais vazio e, há dois dias, mais interessante, além de um pouco distante da trilha sonora de 2006. Não consigo ainda dizer o que é, nem escrever algo no mínimo bonito a respeito, mas tenho uma nova trilha sonora. Na falta das minhas palavras, tento encaixar os últimos dois dias nos últimos dez anos na imagem de uma playlist:

1. The double life (Rainer Maria)
 save me some time, I can't tell any more what's yours and what's mine

2. The awful truth of loving (Rainer Maria)
it's a dilemma of boys and girls for centuries
do I really know you? do you really need me?
first it feels right then you write a novel worrying about the awful truth of loving

3. Ears ring (Rainer Maria)
You need contact daily
Your conscience is failing
You need contact daily
And you already love her

4. Catastrophe (Rainer Maria)
But I've got a plan.
I'm gonna find you
at the end of the world

5. Bottle (Rainer Maria)
It's like a bottle to the head.
I'm seeing stars, I'm seeing red.
I'd taste your mouth in anyone's kiss.
Where do you end and I begin?

6. Life of leisure (Rainer Maria)
The future's going out of focus.
Our talk is cheap, but the phone bill is not.
And how can one word mean another?
And why am I staying up alone in the dark?

7. Southpaw (Rainer Maria) 
Cracked knuckles, and my fists are bandaged up for the fight.
Am I ready?There's the bell.
How many rounds can I go?
And how can I soften the blows?
Can I avoid them altogether?
But my heart isn't in this.
I'm supposed to be a seasoned fighter.
It feels like my first hit.(and it hurts like...)
I didn't see this coming anyway.(yeah, it hurts like hell)
But my heart isn't in this.
I'm supposed to be a seasoned fighter.
It feels like my first hit.(and it hurts like...)
I didn't see this coming anyway.(yeah, it hurts like hell)
So don't tell the crowd,
but I'm gonna let my guard down.

8.  Make you mine (Rainer Maria)
Can you name all the bones in my body?
Can you make all the tones in my head?
[...]
Can you lay all my ghosts in their graves?

9. This is love (P.J. Harvey) 
I can't believe life's so complex 
When I just wanna' sit here and watch you undress 
This is love that I'm feeling 

10. Untitled and unsung (Belly) 
I want you soft in the middle. I see a strange and furious face. I know your heart. I want your pearly hand in my hair. We make a strange and furious pair. I want you locked in the middle. I know your heart. I know your heart. It's just like mine was. So you wanna know why I can't sleep. You wanna know why I can't sleep. You wanna know why I can't sleep. Unless I've got a belly full of wine. You show up in time for a bad time. Mmm, 'less I've got a belly full of wine. You show up and the world is wild. I want your pearly little hand in my hair. We make a strange and furious pair. I want you pearly on the inside. I know your heart. I know your heart. It's just like mine was. So you wanna know why I can't sleep at night. You wanna know why I can't sleep at night. You wanna know why I can't sleep. Unless I've got a belly full of wine. You show up in time for a bad time. Mmm, 'less I've got a belly full of wine. You show up in tails for a bad time. Mmm, 'less I've got my belly full of wine. I'm drunk and the world is wild. You got it. Heaven in your hand,You got it. You got it, Heaven in your hand.


11. ?

domingo, 20 de dezembro de 2015

belladonna

Enquanto sufoco na incessante busca por meu lugar no mundo e nos efeitos do ibuprofeno, parentes cumprem suas obrigações morais me presenteando com uma colônia com fragrância de cereja ou uma camisola com estampa de corações e poodles. Mal sabem o quanto detesto perfume e como cachorros, especialmente os poodles, muitas vezes me irritam. Meu coração pertence aos gatos. Tenho dormido com uma velha camiseta em que fiz um desenho do Bowie. Acreditam que, em seu lugar, a mulher tem cheiro de fruta e veste a ambiguidade, anda na corda bamba entre a menina dos cachorros e a mulher na camisola sensual, a mulher grande em uma pequena camisola tamanho M, esperando, é claro, um homem. Mal sabem que deixei esse lugar e que já não espero ninguém.
Ontem esperava Lydia. Esperava sentada sufocando na busca e nos efeitos, e também na tarefa de entender e explicar o significado de pulsão. Pulsão, que não é um estímulo que provém do exterior, mas de dentro do organismo, parece até aquela maldição que eu sinto. Não sei se foram os efeitos do ibuprofeno ou do período menstrual, ou se foi Lydia no palco sendo o que não sou (she owns the place!) que me fizeram desistir de pisar nesse lugar outra vez. Lydia, que parecia imune a todas as violências das relações amorosas, a todas as frases feitas e feias (como a velha "estou me separando") ou a todos os comentários que nos diminuem ("até ela conhece essa banda!") gritava, proferia o seu mundo em nós e arrancava dos homens de sua banda os sons mais arrebatadores que criavam uma atmosfera de transe. Sessão descarrego, recarga de energias, algo intenso que eu mal sabia que sentiria.
Não sei quantas vezes desisti de escrever isso. O remédio se foi, Lydia me salvou. A música sempre me salva. Hoje, curiosamente, um ano desde a morte da nossa gata, a homeopatia e a fitoterapia me salvam do perfume e da camisola, desse lugar de cadela que leva chutes e então deita e rola, esperando o próximo chute e a chegada das visitas, quando devem prendê-la, guardá-la para que não seja vista. Não sei se é a maldição mensal ou aquela maldição de ser "a outra" que começam a me mover desse meu lugar que ainda nem encontrei.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

domingo, 8 de novembro de 2015

Um trecho

De repente, mais nada,
Nem conto de fada,
Nem relacionamento aberto.
Quero ninguém por perto.
Nem peito aberto,
Nem sonho de cavalgar no cavalo branco
Num belo dia.
Não tem mais olho que brilha.
Não tem amizade colorida.
Não espero um sorriso para ganhar o dia,
Nem alguém para me mostrar coisas bonitas da vida.
Deslizo da ilusão,
Lato alto para expulsar do ouvido
Os belos relatos testemunhados pelos amigos.

... [continuaria]

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Acredito,
Dou crédito,
Assino embaixo,
Assassino meu passado,
A quem quer que dite
Que o dito amor não existe.
Bendito seja
O olho que provoca
A cortina ébria,
Brinca, quebra as peças.
De repente, restam
Regras, remendos,
Acordos e donos.
Não mais o brilho, o frio
Nem magia.
Coração e olhos, anatomia.

domingo, 13 de setembro de 2015

How soon is now?
How soon is never?
Reconto as horas.
Recordo as ameaças.
Recorto as nossas feridas
Femininas (all the time) (tout le temps)
Fingimos de mortas, (bem)
vestidas, desinteressadas,
castas, simpáticas -
sim sim sim NÃO!
Se emancipadas,
é uma facada.
Forçadas, tocadas,
feridas, caladas,
Forjadas.
Frígidas,
Não gritam mais.
Não sei se fujo ou se penso em suicídio
quando vocês nos lembram
que a hora não passa
num pulso feminino.

domingo, 16 de agosto de 2015

os números da loteria

Meus anos pares
são melhores.
Ímpares, são difíceis.
Porque nos ímpares,
minha idade é par,
e para lidar com par
é preciso empurrar
com a barriga.
Nos anos pares
minha idade é ímpar.
Independente de um par
não há problema,
já que par é para mim
sempre um prejuízo.
Um por ano,
seja par ou seja ímpar,
qualquer que fosse a idade,
nunca houve
Paridade.

domingo, 9 de agosto de 2015

Do ridículo do machismo

Cantada é problema, é machista. Mas no fim, eu, alvo, ri do ridículo na pessoa que me cantou. 

A cena:

Manhã de um sábado na saída de uma estação de trem. Estou caminhando em um corredor vazio em direção à rua. Dois caras conversam encostados naquela catraca antiga da estação, um do lado de fora (no corredor pelo qual eu passo) e o outro, do lado de dentro. O que está dentro da estação GRITA quando eu passo:

Nossa, hein, princesa! É "nóis"! E aquele "what's" que você me passou naquele dia e eu perdi? Me passa de novo!


quinta-feira, 30 de julho de 2015

Distância
no tempo.
Tem problema não.
Tempero.
Tem tempo que te quero,
e já envelheço.

Repele
rei nesta pele.
Pede.
Pés delicados
não tenho.
Meus encantos?
Em algum canto
recôndito.
Recomeço, peço,
Na ponta dos pés:
Despela.

Langor.
Garoa.
Brota, gota a gota,
agouro no meu sonho.

Mal feito e de mal gosto

Se soubesse
que subo pelas paredes
quando sinto esse abraço,
que sinto até enjôo de barco...
Ficaria bem bravo
pela senhora ousadia
da menina.
O senhor ficaria de
braços cruzados.
E eu, de mãos atadas,
à deriva.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Trash french valentine

1.
Rumina o rompimento
Ruptura
Ansiedade obscura.
Canção de ninar:
"Dorme moça.
Amanhã não será mais pura.
Nem vai saber o que eu fazia
enquanto você dormia."
2.
Engole o seu destino
E o membro superior
Falo. Já ouviu falar de amor?
Me faz, porque eu te faço.
3.
Sexo a dois à dor.
De um lado dói?
Do outro, domina.
E não pára de ferir enquanto não termina.
Sexo a dois à dor.
De um lado a ferida,
Do outro, a folia.
Infinitamente nonstop.
Se é com dor, como chama?
Chamou a doença
E diluiu a dignidade alheia.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Em uma ordem qualquer, quem eu gostaria (muito) que viesse (logo) tocar em São Paulo

Sleater-Kinney
P.J. Harvey
Rainer Maria
Portishead
Veruca Salt
The Babes in Toyland
Superchunk

Veria de novo: The Breeders, Sonic Youth (e/ou Lee Ranaldo), Yo la tengo, Team Dresch.

(pensando em quem ainda está se apresentando; e sim, sei que posso ter esquecido de alguns nomes)

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Classificados #2

Doutoranda com boa digitação em tablet e bico de papagaio no lado direito da mandíbula procura fisioterapeuta maduro, apreciador de suco de abacaxi com capim-santo, fã de Glenn Branca, com boa pegada e mão santa, para relacionamento sério.

Classificados #1

Ex-funcionária do comércio procura homem com credencial do clube dos comerciários, que leia Simone de Beauvoir, tenha um gato chamado Julio Cortázar e um telefone celular com lanterna, para relacionamento sério durante o outono e o inverno. São exigidos passeios mensais na unidade Bertioga do clube.

Sem indiretas e sem recadinhos. É só uma brincadeira de quem está solteira há tanto tempo.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Palabras y palavras: Les favourites

Palavra preferida: patacoada
Favourite word: bittersweet
Palabra preferida: paraguas
Mot preferé: Cocotte-Minute

Dog bless mes blessures

Bring me candies,
Just crush my heart.
Those little white candies,
They will make me cry
And crawl
With cranberry eyes
And coloured socks
Giving up skies
And asking you why.
Let me rhyme in English.
It is so much easier.
So much better to be blessed
Than être blessée.
Really? Seriously?
I'd rather lick mes blessures
Than being stuck in the blessing.

"Candy, candy, I can't let you go... Life is crazy... Candy, baby!"

Demora a secar os cabelos,
Pensa no Caso Dora,
Seca os pensamentos
Intrínsecos a uma massa seca.
Tem devorado moços com os olhos
Ressecados do recesso,
E do receio.
Recomeça a pensar no seu caso
Até que fura a casca.
Veste o casaco,
Olha-se no espelho com desprezo
E sai em busca de ar.
A cada letra,
Mais descaso
E mais se afasta
Da vida.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Se olham
quando passam,
Passa ou repassa.
Disfarça
mas pensa nele
e repensa o passado.
Perde o passo.
Sempre se arrepende,
A moça-repelente.

sábado, 4 de abril de 2015

aguada

Dividir águas com outrem
É quase um ultraje
Diante do medo de ser afogada.
Nem só em seu corpo
Em água
Sente-se tão à vontade.

Ilhada no hipermercado

Toldo azul estufa de ar enquanto o chão estufa de água.
Calçada e rua são só água.

O toldo forma ondas  na mesma direção para onde a água no chão corre.

Um funcionário de uma lanchonete fast food descansa em seu horário de almoço ou no final de seu expediente frustrado. Ele está ilhado em seu local de trabalho. Talvez ele descosture a sua sacolinha verde musgo para fazer um cobertor, e o seu boné preto com a palavra BOSS costurada em amarelo brilhante, em que um $ está no lugar de um S (BO$S), e junte aos seus tênis vermelhos para fazer um travesseiro para passar a noite ilhado em seu local de trabalho, impossibilitado de ir para casa, de passear de girafa ou de ônibus ostentando o cargo de boss de seu boné, cargo que está longe de alcançar em seu atual trabalho,  o que notamos pela sua cara amassada com olhos apertados como se o seu boné os pressionasse.
O toldo agora só balança a sua aba, como criança sentada em banco de adulto que balança as suas pernas no ar, o toldo azul com letras brancas, como cadarços brancos em tênis azuis de criança. A água, cansada de correr, agora se espalha e segue dissonante do toldo.
Isso dura muito pouco e logo o céu começa a acender e a apagar as suas lâmpadas, rosnando, para que comecem a sinfonia outra vez.
Ironicamente o vendedor também nos chama a atenção: "Atenção, clientes." Eu, que tenho medo de chuva e escrevo sobre ela agora para abafar esse medo, imediatamente penso que será anunciado que a loja vai fechar porque há muitas pessoas se escondendo da chuva aqui, e que teremos que ir para fora, dançar com o toldo e as águas sob as piscadelas e o rosnar do céu, quando, ironicamente, eu digo, o vendedor revela ao que ele quer que prestemos atenção: "Oferta relâmpago!" Percebo que será vantajoso ao mercado permanecer aberto enquanto a chuva durar. Só falta chamarem o funcionário boss para voltar a trabalhar.
04.03.2015

Ninguém mais deve se lembrar da terapia à moda antiga, de choque; choquinho agora é a nova onda da fisioterapia.
08.02.2015

27 de dezembro de 2014, uma semana sem Mima

Chora a falta,
Chora a falha,
Chora a forca,
O sufoco, o nó
Na garganta,
Nosso e da gata.

Anda, é hora
De ir embora.

Bola de amor vira bola de pêlo preto, irreconhecível, pelo asfalto que a acolhe no último abraço, em que ela olha para quem tanto amava, amou, esperando um gesto que a salve e eis que nada. Como será que é morrer sem entender quem te ama ao redor só te olhando morrer, como se isso fizesse parte da vida? Quando é que essa parte acaba e a vida volta ao normal?

domingo, 29 de março de 2015

nem mais um latido

Meu amigo me contou que não estava matando cachorro a grito, mas a paulada; comentei que eu não mato cachorro a grito, nem a paulada, mas que pedi para os cachorros silenciarem. 

domingo, 25 de janeiro de 2015

A bone spur in my
speech
Pink long-haired
bear
Citronella candle
Noise inside my
head
And there are light words,
beautiful songs
around my ears
How did you 
disappear?
Plastic in my
mouth
Noisy teeth
There is no doubt
The hurricane is
here.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Certa vez entrei num debate em rede social sobre Valesca Popozuda ser ou não ser feminista, e quando citei a P.J. Harvey no meio da minha reflexão que transpirava desconfiança depois que analisei a letra de uma música de Valesca escrita por um homem machista, alguém escreveu algo como "não venham com música gringa" no meio de argumentos bem problemáticas. Lembrei dessa situação ao ver este vídeo: 


Não quero, aqui, continuar o debate, só compartilhar a recordação de que ainda prefiro muito mais a P.J. Harvey. Amém. Lick my legs, I'm on fire. Lick my legs of desire, cantou P.J. em "Rid of me".

Rainer Maria está de volta

Feliz 2015: http://www.brooklynvegan.com/archives/2015/01/rainer_maria_re_1.html

E aqui, uma campanha para trazer a banda ao Brasil: http://www.queremos.com.br/rainermaria?r=GoYF229

domingo, 21 de dezembro de 2014

Mima

Seu nome não poderia ser outro
e nenhum outro pode sê-la agora.
Confiava tanto em
nossos mimos,
que não se afastou
do carro,
seu objeto preferido;
justamente do carro
da mulher surda,
a quem o
GRITO
não fez sentido.
Agora,
fotos e ausência
que eu nego.
Meus olhos fofos
e minhas costas 
indobráveis
de tanto
desejar
que ficasse.
Foi ontem.
E não parece que
foi ontem.
Um ano após
o depósito da minha dissertação.
Daqui a um ano,
dois anos do depósito,
e um do relógio
que PAROU.
E roubou o nosso tempo.
Do vermelho em poça
que possuiu a nossa
Preta e branca,
Pretinha,
Menina, gata coletiva,
Mi, Mimas, Mimosa, Mimassauro.
Deitada no "pelucinha",
ela era
Pato, rato, galinha, porco-espinho, pinguim, peixinho.
Um pneu ou um oito ou um vaso.
Era muito amor,
e entre tantos nomes,
muito mais poses.
Era a gata
para um calendário diário.
365 poses eram possíveis.
Mas agora, nenhuma, nos próximos anos,
fará sentido. 

sábado, 20 de dezembro de 2014

Dix minutes dans la Cocotte-Minute

zine apresentado como trabalho final do módulo Intermédiaire 2 do curso de francês na EFL Global (o texto pode conter alguns erros)







patacoada

De cara caiada,
calada
como uma
pata acuada.
Patacoada.
Em polvorosa,
Rarefaço
o que eu
raramente faço, 
como um
polvo rosa.

mês de desprezo

dezembro,
dispenso.
mês de despesa
de presentes
intercambiáveis
que vem e que voltam
pra loja de onde vieram.
embalagens, presentes e
os mais sinceros desejos
descartáveis
e dobráveis.
mês de desespero.

problema poético

meu problema
com poema
é
explicar demais.
porque, que é, que era, que foi,
que, mas, mais, que,
sujeito, verbo, objeto
sujeitos a mais
uma linha,
um ponto;
uma vírgula,
outra linha
forte,
que não desfia,
mas que não
desafia
a escrita quadrada
em que enquadro
as imagens 
que escorrem pelos meus braços.

Ao ler Ana Cristina Cesar

Ana C.,
Prazer em te conhecer.
Me pergunto se os pais
da minha amiga com teu nome
Te leram.
Os meus, não.
Mas a minha caneta
se parece com a tua.
Contudo (não em tudo),
Era a tua
melhor entortada 
nas linhas retas.
Enquanto eu,
entorno a tinta
procurando
no poema que escrevo
qual será 
sua última 
linha.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Por causa da eletricidade no chuveiro, 
escorrem traços de água pelo meu corpo.
Por causa da eletricidade do encontro,
traço o seu rosto no meu corpo.
Vejo traços do seu rosto
nos traços de água,
em mim. 

a partir da letra de "I'll make you mine", da banda Rainer Maria

Can you name all the bones in my body? Can you make all the tones in my head? Que responsabilidade seria ganhar esta caixa quadrada, desajeitada e dura na qual me encontro. F R Á G I L. Este lado para cima. Que crueldade entregar esta caixa a algum par de mãos macias, aquecidas e de bom coração. Que complexo nomear os ossos no corpo de alguém, separar os que doem dos que não doem, catalogar, dobrar os ossos e guardar em sacos plástico. 

Tem dias em que sou um amontoado de músculos, nervos e articulações embaraçados, enroscados e dobrados dentro de um envelope jogado em cima de uma mesa feita de ossos. Os ossos caminham e carregam o envelope.

Can you name all the bones in my body? Os ossos, os músculos, os nervos, as articulações, todos anônimos, gastos e degenerados pelo pensamento tóxico e pela ilusão de que alguém um dia possa vir a nomeá-los. Can you make all the tones in my head? Parar essa música, esse disco de um lado só que recomeça a cada minuto, que range no encostar da agulha fria que o costura, deixando marcas de sangue por onde ela passa. I could tame all the tigers in your bloodstream. É a agulha ou são as garras do tigre que abrem o espaço por onde o sangue escapa da pele que o aprisiona e o impede de correr? Os tigres estão aqui fora ou debaixo da pele? Can you lay all my ghosts in their graves? Pode o tigre fantasma voltar a dormir, o sangue parar de jorrar, o barulho cessar e o corpo se reorganizar? O que vejo são só tigres e ossos transparentes e acinzentados em meio a uma fumaça branca. 

Pintei de vermelho um par de brincos de tecido em formato de rosas que com o tempo de uso adquiriram um aspecto encardido. Fico me perguntando se quando eu vesti-los, não terão a impressão de que tenho uma ferida em cada orelha, principalmente quando eu começar a me contorcer por causa das dores que eu sinto no ouvido vez ou outra, volta e meia. 

domingo, 9 de novembro de 2014

Contam sobre a Sylvia Plath para as garotas que escrevem...

impressões sobre a peça Ilhada em mim - Sylvia Plath

Há dez anos, nesta mesma época do ano - há pouco mais de um mês do episódio do milho e das duas semanas vivendo de frutas e água de côco, assintindo desenhos e lendo Memórias de uma moça bem comportada, da Simone de Beauvoir - eu me sentia sufocada. Nesse sufoco, na passagem de um mundo para outro, com a janela aberta, ouvindo que uma vizinha tinha passado de um mundo para o outro, em outro sentido, eu lia todas as Sylvias Plath da biblioteca do bairro e encontrava conforto, abraços entre a capa e a contracapa dos livros, sabendo que alguém já tivera a sensação de estar sufocando, se afogando e afundando. Na mesma época eu comprei um cd da Kristin Hersh e encontrava o mesmo conforto na letra de The letter, que parecia ter saído da poesia de Sylvia Plath, neste trecho: Don't forget I'm living inside the space where walls and floor meet. There's a box inside my chest. An animal stuffed with my frustrations. Can you hear me? (Traduzindo: "Não esqueça que eu estou vivendo em um espaço onde paredes e chão se encontram. Há uma caixa dentro do meu estômago. Um animal recheado com as minhas frustrações. Você pode me ouvir?"
Embora eu associasse uma música da Kristin Hersh à Plath, foi outra música que me levou à autora. Bloody Ice Cream da banda riot grrrl Bikini Kill, dizia: The Sylvia Plath story is told to girls who write. They want us to think that to be a girl poet means you have to die. Who is it that told me that girls who write must suicide? I've another good one for you, we are turning cursive letters into knives (Traduzindo: "A história da Sylvia Plath é contada a garotas que escrevem. Querem que nós pensemos que ser uma poetisa significa que você tem que morrer. Quem é esse que me contou que garotas que escrevem devem se suicidar? Eu tenho uma outra boa para você, estamos transformando letras cursivas em facas."). Mencionando as tentativas de suicídio e então o suicídio de Sylvia Plath, a letra, ao meu ver, termina com uma boa nova positiva às "herdeiras" de Plath, às garotas que escrevem: a transformação da letra cursiva em faca, não para se matar, mas para atacar, para se defender daqueles que querem destinar todas as garotas que escrevem à morte. 
Nunca me aprofundei na obra de Plath, mas li tudo dela a que tive acesso, com exceção dos diários, que comecei a ler há alguns anos, parei e que considero reler desde o começo, agora indo até o fim, em um outro momento. Nos últimos dez anos carrego a autora no coração e por isso saber de uma peça sobre ela nos últimos meses me deixou bem contente. No último dia de apresentação de Ilhada em mim - Sylvia Plath, quando caiu uma chuva forte e muitíssimo desejada em São Paulo, depois de muitos dias sem chover, fui ao teatro do Sesc Pinheiros ver a peça, que começa com pingos do teto ao chão que está forrado de água, o que fazia com que os desavisados pudessem pensar que a chuva de fora estivesse interferindo lá dentro, mas na verdade era apenas o afogamento como metáfora para o sufoco de Plath, que se matou colocando a cabeça dentro do forno após abrir o gás de cozinha, dentro da cozinha fechada com todas as frestas vedadas. Não sou boa em resenhas e nada entendo de teatro, mas em poucas palavras posso contar que é uma peça difícil para quem a encena: há poucos diálogos, o áudio com verdadeiras gravações de Plath e do marido, as projeções das legendas do áudio e das suas poesias, o cenário, os movimentos e as expressões nos rostos do ator e da atriz que interpretam Sylvia e Ted, fazem a peça, contam, cortam, quebram, vão e voltam na história. O clima da peça é denso, tenso e pesado, mas lindo. É delicado e sufocante (talvez um pouco mais sufocante para quem estava com refluxo devido a um caos emocional no estômago, eu). A platéia aplaudiu em pé e ao levantar e eu desabei a chorar o sufoco que segurei durante toda a apresentação. 
Anos depois ainda há garotas que escrevem, sufocam, se afogam, mas que também reagem, que voltam empunhando letras cursivas como facas. Por isso fico com o final do poema de Plath Lady Lazarus
Out of the ash 
I rise with my red hair 
And I eat men like air

Como (des)construir uma mulher feia


 impressões sobre o filme Violette

Simone de Beauvoir se refere à Violette Leduc, nas cartas que escreve a Nelson Algren, como “a mulher feia”. Foi com alguma chateação que li e reli essas palavras e as reclamações de Beauvoir sobre as vezes em que jantava com Leduc. Aguentar a mulher feia parecia um fardo. Daí eu me lembrava de algumas parentes e vizinhas, que infelizmente estiveram muito presentes na minha formação – e que ainda insistem em invadir o meu espaço e da minha família –, que se dedicam a uma vida de aparências, que caluniam os outros, que criam intrigas nas vidas alheias enquanto se escondem atrás de sorrisos, cumprimentos cordiais e discursos em nome do amor. O fato de Beauvoir ter amizade com Leduc e rotulá-la como “a mulher feia” me remetia mais a esse tipo de pessoa – as parentes e as vizinhas – do que à mulher que desmantelou o Eterno feminino, tão nocivo às mulheres, e que chamava a atenção das mulheres para que elas se unissem. Mas nessas cartas já era também uma surpresa o encanto no qual ela se enredava em sua paixão por Algren.
Nunca fui atrás de outros escritos sobre Violette Leduc, nem dos escritos dela; em um livro sobre Beauvoir encontrei uma foto dela e não pude deixar de pensar em sua aparência, achei a mulher... feia; mas feia para mim, não universalmente feia. Mas eis que surge um filme sobre Violette Leduc: Violette (Violette, direção: Martin Provost, França, 2013), em que a saga de Leduc para tornar-se escritora e a amizade com Beauvoir são narradas com a importância que Leduc merece, com ênfase em sua escrita poética e com uma imagem forte e essencial da presença de Beauvoir na vida da escritora.
O filme mostra Violette já adulta, desde quando ela começa a arriscar as suas primeiras palavras pensando em escrever um livro - na época em que ela ainda roubava comida e negociava no mercado clandestino para sobreviver aos estragos da guerra – até o reconhecimento de sua obra que a permite caminhar com as suas próprias pernas e ter a própria vida em suas mãos de escritora.
Não poderia confrontar o que assisti com a vida de Leduc, já que esse filme é minha única referência a respeito dela. Nele, o que vi foi uma Violette Leduc inteligente, que mesmo sem ter estudado ou trabalhado, escrevia muito bem, mas que era ávida por algo que preenchesse ora o seu coração, ora o seu corpo. Ela buscava uma mulher, um homem, outra mulher, outro homem, alguém que a desejasse carnalmente mas se sentia, na maior parte do tempo, uma mulher feia que ninguém desejava. Ao mesmo tempo, ela queria atenção, talvez a atenção que não tivera da mãe, a quem ela acusa de nunca ter segurado a sua mão, mas somente a manga da sua blusa, para atravessar a rua quando criança. Leduc lamenta e se revolta o tempo todo pelo tempo que as coisas levam para acontecer para ela, ou por tudo o que deu errado em sua vida, e ela tem a si mesma como causa de todos esses estragos; quando ela se irrita com a mãe e esta lhe pergunta o que fizera a ela, Leduc responde: “Você me fez!”
Leduc parece buscar alguém mas desconfia de todos ao seu redor, outras vezes se apaixona e logo se decepciona por não ser correspondida da forma que espera. Ela chora em desespero como se todos fossem culpados pelos seus atos, e ela, culpada pelo que é, pelo que se tornou. Mas é nas relações intersubjetivas, mesmo que essas sejam tão espinhosas, que Leduc consegue alcançar alguma paz e satisfação em sua vida. Em Paris, na casa de um amigo do amigo que a magoara, ela encontra jogado o livro A Convidada de Simone de Beauvoir, ela leva o livro para casa, lê e decide entregar os seus escritos à Beauvoir, que os aceita, lê e passa a ajudar Leduc a publicá-los e a escrever mais. Mas Leduc se apaixona por Beauvoir, a cerca, cobra atenção, coleciona as suas fotos e a tem como objeto de desejo; atentando à essa situação, ficou bem mais fácil entender que Beauvoir carregava um fardo, já que Leduc não a deixava em paz e era um tanto insistente. Contudo, Beauvoir não a agrada, não a incentiva ao choro desenfreado, não a tem como coitada, não passa a mão em sua cabeça, mas sempre a impulsiona a escrever mais, e lhe mostra a importância desse trabalho. Beauvoir não deixa a amiga desistir, assinala a importância da busca por autonomia, e também a importância de contar sobre o aborto que fizera, sobre a sua sexualidade e sobre as suas experiências homoeróticas para ajudar outras mulheres. Beauvoir envia a Leduc, se passando pela Editora Gallimard, um pagamento mensal para que ela se sustente; além disso, Beauvoir também a acompanha no seu processo de recuperação em uma clínica quando ela adoece, levando as cartas e o reconhecimento da crítica nos jornais, que finalmente começam a surgir para o trabalho de Leduc. Assim, compreendo o quanto Beauvoir fez por Leduc, e se ela a chamava “a mulher feia” quando falava dela aos outros, ela de alguma forma preservava a sua identidade; para Beauvoir Violette Leduc era uma escritora, a tornar-se conhecida, com um trabalho importante por fazer pelas mulheres, e “a mulher feia” era a sua amiga carente que a idolatrava e cobrava demasiada atenção, que fugia desse trabalho e que se escondia em um ser-mulher-feia.
É preciso o reconhecimento de seus projetos, que lhe trazem sustento e a aprovação pelo olhar do outro, e quando ela se debruça sobre o trabalho e recebe esse reconhecimento, vemos uma mulher cuja aparência lhe pesa menos, que respeita a liberdade de Beauvoir na relação que elas mantém, que abre espaço para que as pessoas se aproximem dela e até mesmo a desejem, e que não dá tanta importância quando alguém a abandona.
Leduc encontra um lugar no campo para viver, e é nesse lugar que ela está apaziguada, sem asfixia, sem ser a filha bastarda, sem estragos (Asfixia, A filha bastarda e Estragos são títulos de seus livros), escrevendo no final do filme, enquanto Beauvoir está na televisão falando do percurso de Leduc e da contribuição que ela fez às mulheres que, naquela altura (década de '60), já tinham a permissão para abrir conta em banco, sem o marido (exemplo mostrado no filme).
Vejo no final do filme uma lente feminista, que exalta toda e qualquer emancipação da mulher, por meio do trabalho, do coletivo, da amizade entre duas mulheres, da literatura a partir de confissões íntimas que falam com e por muitas outras mulheres. Sozinha, Leduc existia enquanto mulher feia e assim insistia em mostrar-se ao mundo. Beauvoir a força a deixar de lado a má-fé da feiúra e a assumir a própria existência para além do seu corpo, a fazer de si o que não seja “a mulher feia”. A feiúra de Leduc não está em absoluto no seu rosto, mas está nos maus tratos às mulheres solteiras que recusam o casamento, às mulheres lésbicas, às mulheres que abortam; a feiúra de Leduc é construída pela sociedade que a convence a assumi-la, e é escutando Beauvoir que ela vira a mesa e desconstrói a sua feiúra ao expor a sua singularidade: a sua sexualidade, e a sua vontade de não casar e de não ser mãe, como escolhas de qualquer mulher, de muitas mulheres, que se tornam feias aos olhos da moral dominante. É nesse momento que o penteado, as roupas e a maquiagem de Leduc mudam; ao meu ver, ficam mais harmoniosos e mais bonitos, mas longe de tentar impor à mulher um modelo de aparência para que ela fique bonita, prefiro entender que ver uma Leduc bonita na tela corresponde a um tornar-se bonita – independente de como se dá esse tornar-se – que representa um tornar-se o que quiser, deixando assim de existir enquanto mulher feia.